Vitrines holandesas
Por João Pereira Coutinho
Você, leitor, que é pessoa versada em novas tecnologias, conhece o Google Now?
Eu não conheço. Eu não conhecia. Até ler Claire Cain Miller em prosa dominical para "The New York Times". Instrutivo.
O Google Now é um novo "app" (para usar a linguagem cafona dos ciberfanáticos) que envia informação para o utilizador mesmo antes de nós precisarmos dela.
Conta a autora que, depois da inscrição no Google Now, o bicho deu sinais de vida no celular. Com uma sugestão: era preciso sair 15 minutos mais cedo de casa para chegar no horário ao jantar. Isso porque o trânsito no centro estava uma barbaridade. Como foi possível ao Google Now saber tudo isso?
Sabendo. Cruzando informação. Primeiro, o "app" foi às reservas do OpenTable no Gmail da autora, só para confirmar a hora da reserva no restaurante.
Depois, através da localização do celular, deu uma espreitada no Google Maps, confirmou os endereços (da casa e do restaurante), fez as contas ao trânsito e deu a sua sentença. Era preciso sair 15 minutos mais cedo. O cenário é puro Philip K. Dick. Só na ficção científica o futuro é antecipado no presente de forma a alterar esse mesmo futuro. Existe até um conto de Mr. Dick, "Minority Report", que deu filme tolerável. Mas, como sempre, divago.
Ou, como sempre, talvez não. Porque essa pequena história não horroriza apenas pela forma totalitária como ela condiciona o futuro, transformando cada ser humano numa espécie de marionete da tecnologia.
A história horrorizou Claire Cain Miller pela quantidade de informação que uma empresa é capaz de saber sobre um ser humano. Onde ele está. Onde ele mora. Onde ele vai jantar. E até que rota ele costuma fazer para chegar do ponto A ao ponto B.
Não sei se o Google Now dá uma olhada no cardápio do restaurante e, atendendo ao histórico gastronômico da comensal, vai encomendando o filé no ponto e aquela garrafa de vinho que é aberta em ocasiões especiais.
Porque chegará o dia em que o Google Now saberá por antecipação quais são as nossas ocasiões especiais: lendo torpedos apaixonados ou até medindo, de cada vez que encostamos o ouvido ao celular, o nosso batimento cardíaco enamorado. E saberá tudo isso porque fomos nós a fornecer as informações mais relevantes sobre a nossa existência.
O recente escândalo com a Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos é um caso exemplar. Sim, mil vezes sim: não cabe ao governo americano violar grosseiramente a privacidade de cidadãos e estrangeiros, espiolhando e-mails e contas de Facebook.
Mas, oh Deus, é tão fácil e tão tentador! Antigamente, espionagem era coisa difícil. Perigosa. Demorada. Era preciso vigiar o suspeito --dias, semanas, meses. Conhecer as suas rotinas com precisão de mulher despeitada. Depois, era preciso entrar lá em casa, instalar grampos, sair sem deixar rastro.
E depois vinham novos dias, semanas ou meses em que era preciso escutar com paciência de santo todas as conversas, todos os suspiros, todos os roncos do sujeito.
Hoje, uma distopia como o "1984" de George Orwell seria incompreensível. Não é preciso nenhum aparato totalitário para saber quem somos, o que somos, o que fazemos, onde estamos, do que gostamos, do que não gostamos, com quem vivemos, onde nascemos, onde estudamos, o que estudamos, o que fazemos.
Nós próprios fornecemos essa longa lista de privacidades que fariam as delícias das antigas polícias secretas dos regimes totalitários. Alegremente. Publicamente. Voluntariamente. E cedemos por quê?
O filme é fraco, mas a frase é primorosa: "Vaidade: definitivamente, o meu pecado favorito". Assim falava "O Advogado do Diabo", pela boca diabólica de Al Pacino.
Que o mesmo é dizer: mergulhados na nossa irreprimível condição narcísica, usamos a tecnologia e as redes sociais para montar pequenos altares públicos aos nossos umbigos privados.
E, claro, nessa adoração onanista acabamos por destruir a mais importante conquista da civilização ocidental: esse espaço íntimo onde os olhos de terceiros não entram.
Nada disso desculpa os abusos do poder político? Fato. Mas quem não quer ser tratado como carne para canhão não deve exibir-se nas vitrines holandesas dos bairros vermelhos da internet.
Fonte: Folha de S. Paulo 03/09/2013
João Pereira Coutinho, escritor português, é doutor em Ciência Política. É colunista do "Correio da Manhã", o maior diário português. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Record). Escreve às terças na versão impressa de "Ilustrada" e a cada duas semanas, às segundas, no site.
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