O mito na sala de jantar
Quem pesquisa a relação entre televisão e escola certamente conhece o livro O Mito na Sala de Jantar, fruto da dissertação mestrado da professora e pesquisadora Rosa Maria Bueno Fischer, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A obra – uma das primeiras que, no Brasil, inaugurou o estudo da recepção da tevê junto aos estudantes – está completando 30 anos. De lá para cá, a autora não parou mais de estudar nem de publicar suas pesquisas, sempre buscando compreender os impactos do audiovisual na subjetividade e no dia a dia de crianças, jovens e adultos.
Nas duas últimas décadas, Fischer também se especializou no estudo do pensamento do filósofo francês Michel Foucault. Não é à toa que ela está lançando agora um novo livro: Trabalhar com Foucault – Arqueologia de uma paixão (Editora Autêntica). “Nele trato de conceitos de Michel Foucault e, na segunda parte, de como fazer análises da TV e do cinema com base na teoria do discurso e do poder em Foucault. Mas penso que O Mito na Sala de Jantar não foi abandonado. Muitas pessoas continuam comprando o livro e me pedindo para falar da pesquisa que está nele. Isso é muito bom”, destaca.
Foi exatamente por essa razão, que a revistapontocom entrou em contato com a professora. Objetivo: resgatar a história do Mito na Sala de Jantar e comparar o contexto da relação da TV com a educação daquela época com a interface dos dias de hoje. Resultado: uma entrevista informativa e com alguns dados históricos para quem gosta e estuda a relação entre o eletrodoméstico mais bem sucedido do mundo e a constituição de conhecimentos e valores de crianças e adolescentes.
revistapontocom – Pode-se dizer que O Mito na Sala de Jantar foi um dos primeiros livros que trouxe o debate da televisão para o dia a dia do meio acadêmico da Educação?
Rosa Maria Bueno Fischer – Talvez se possa dizer que esse livro tenha sido um dos primeiros, não exatamente a tratar da relação da TV com a formação dos públicos infantil e juvenil, a realizar um “estudo de recepção” (metodologia desenvolvida particularmente por teóricos latino-americanos como Jésus Martín-Barbero e Guilermo Orozco). E, sim, é preciso salientar, foi um dos primeiros a fazer um levantamento, de recepção, em escolas públicas do Rio de Janeiro. Ou seja, começávamos, há 30 anos, efetivamente a escutar crianças e adolescentes sobre sua relação com um meio de comunicação que já se anunciava forte e presente na vida das famílias de todas as camadas sociais, em vários lugares do mundo. Claro, já havia nos anos 1970, especialmente nos Estados Unidos, vários estudos que apontavam os possíveis prejuízos à educação das crianças, em virtude de um tempo muito longo de exposição à televisão. Psicólogos, psiquiatras, educadores anunciavam uma nova “droga”: a TV! É o caso da estudiosa Marie Winn, que escreveu, em 1977, o livro The plug-in drug: TV, children and the family. Minha perspectiva era outra, bem diferente dessa, como escrevo no livro.
revistapontocom – A senhora acha que o livro, fruto de sua dissertação, abriu caminhos para o estudo do tema?
Rosa Maria Bueno Fischer – Modestamente, acho que sim, mas isso não é mérito apenas do meu trabalho. Dispor-se a observar, escutar, dialogar com crianças em escolas sobre a televisão em suas vidas era bem raro nos primeiros estudos acadêmicos relacionados aos laços entre Educação e Comunicação. Lembro que na mesma época (ou um pouco depois) em que eu pesquisava para minha dissertação, o jornalista Carlos Eduardo Lins e Silva começava sua investigação com operários sobre a audiência do Jornal Nacional, usando uma metodologia de caráter antropológico, que previa assistir junto com aqueles sujeitos a um noticiário televisivo. Analisar “mensagens” da TV, representações e ideologias dos meios era mais comum e, volta e meia, aparecia não só em estudos acadêmicos como em textos críticos de jornalistas. Existem estudos clássicos sobre TV, como o de Sérgio Miceli, publicado em 1972, no qual analisava detalhadamente o programa da apresentadora Hebe Camargo, numa perspectiva sociológica. Mas o foco não era, seguramente, a questão educacional nem a escuta dos sujeitos-espectadores. O fato é que também essa tendência – de análise do meio e de seus produtos – começava a ganhar força na área educacional. É só lembrarmos dos estudos realizados por pesquisadores da área da educação, como Maria Felismina Fusari e Elza Pacheco, ambas de São Paulo, analisando as relações entre o educador e os desenhos animados que as crianças viam na TV. Ou os estudos diretamente relacionados à formação do telespectador, como os de Maria Luíza Belloni. Hoje temos acumulado um conjunto de pesquisas que colocam o espectador no centro, seja ele o jovem, a criança, o próprio professor, sejam diferentes grupos de distintas condições sociais e culturais.
revistapontocom – Professora, em que contexto a sua dissertação foi escrita? Qual era o objetivo do trabalho? O que ele trazia de novidade naquela época?
Rosa Maria Bueno Fischer – Esse é um aspecto bem interessante. Eu estava realizando meu mestrado no IESAE – Instituto de Estudos Avançados em Educação, da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, no final dos anos 1970. Um tempo difícil, de lutas políticas sérias no país, sob o regime militar. A televisão, particularmente a TV Globo, alinhava-se com os militares e atingia um momento de altíssimo prestígio e de capacitação técnica. Eu tinha aulas com o antropólogo Roberto DaMatta, com a filósofa Zilah Xavier de Almeida Borges (minha orientadora) e me interessava cada vez mais pelo tema das narrativas ficcionais, das histórias de vida, perguntando-me como certas verdades iam se constituindo como verdades para as pessoas, como se construía “a realidade” para os sujeitos. Afinal, perguntava-me, será que também o tempo de exposição à TV teria algo a ver com isso? E de que modo aquelas narrativas televisivas contribuíam para todo esse processo de construção de si mesmo? Bem, nessa mesma época (1979) comecei a trabalhar na TV Educativa do Rio de Janeiro (então chamada de Fundação Roquette-Pinto), coordenando uma pesquisa sobre televisão e criança, encomendada pela gerente da área infanto-juvenil da TV Educativa, Maria Helena Kühner. Esse trabalho foi feito com o jornalista e professor Dermeval Netto. Os dados levantados para a TV Educativa, que desejava planejar sua nova programação, com base em pesquisa com crianças e adolescentes, acabou se mostrando para mim como muito rico e merecedor de uma análise mais detalhada. Isso coincidiu com o momento de eu definir meu objeto de pesquisa no mestrado. A novidade (e o risco, posso dizer) consistia em suspender a ideia de que a TV era perigosa, funcionava como “droga” ou que existia principalmente para manipular as pessoas. Mais do que isso: a novidade estava em levantar a hipótese da TV como “contadora eletrônica” de histórias, como lugar em que circulavam certos mitos, os quais serviam exatamente para interpelar as pessoas, chamá-las. Por exemplo: o mito da origem, presente nas telenovelas (e em tantas outras narrativas ficcionais), e que vemos até hoje na TV. Trinta anos atrás eu escrevia que a pergunta “quem sou eu?”, “de onde vim?”, “quem é meu pai, quem é minha mãe?” – ingrediente sem o qual não se escreve uma telenovela, entre tantos outros – hoje, em 2012, também está presente em programas de alta audiência, como o Fantástico, em que filhos procuram pais, encontram-se e desencontram-se. Mais do que isso: a novidade estava, como disse anteriormente, no trabalho da escuta, particularmente a escuta de crianças e adolescentes de camadas populares.
Rosa Maria Bueno Fischer – Esse é um aspecto bem interessante. Eu estava realizando meu mestrado no IESAE – Instituto de Estudos Avançados em Educação, da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, no final dos anos 1970. Um tempo difícil, de lutas políticas sérias no país, sob o regime militar. A televisão, particularmente a TV Globo, alinhava-se com os militares e atingia um momento de altíssimo prestígio e de capacitação técnica. Eu tinha aulas com o antropólogo Roberto DaMatta, com a filósofa Zilah Xavier de Almeida Borges (minha orientadora) e me interessava cada vez mais pelo tema das narrativas ficcionais, das histórias de vida, perguntando-me como certas verdades iam se constituindo como verdades para as pessoas, como se construía “a realidade” para os sujeitos. Afinal, perguntava-me, será que também o tempo de exposição à TV teria algo a ver com isso? E de que modo aquelas narrativas televisivas contribuíam para todo esse processo de construção de si mesmo? Bem, nessa mesma época (1979) comecei a trabalhar na TV Educativa do Rio de Janeiro (então chamada de Fundação Roquette-Pinto), coordenando uma pesquisa sobre televisão e criança, encomendada pela gerente da área infanto-juvenil da TV Educativa, Maria Helena Kühner. Esse trabalho foi feito com o jornalista e professor Dermeval Netto. Os dados levantados para a TV Educativa, que desejava planejar sua nova programação, com base em pesquisa com crianças e adolescentes, acabou se mostrando para mim como muito rico e merecedor de uma análise mais detalhada. Isso coincidiu com o momento de eu definir meu objeto de pesquisa no mestrado. A novidade (e o risco, posso dizer) consistia em suspender a ideia de que a TV era perigosa, funcionava como “droga” ou que existia principalmente para manipular as pessoas. Mais do que isso: a novidade estava em levantar a hipótese da TV como “contadora eletrônica” de histórias, como lugar em que circulavam certos mitos, os quais serviam exatamente para interpelar as pessoas, chamá-las. Por exemplo: o mito da origem, presente nas telenovelas (e em tantas outras narrativas ficcionais), e que vemos até hoje na TV. Trinta anos atrás eu escrevia que a pergunta “quem sou eu?”, “de onde vim?”, “quem é meu pai, quem é minha mãe?” – ingrediente sem o qual não se escreve uma telenovela, entre tantos outros – hoje, em 2012, também está presente em programas de alta audiência, como o Fantástico, em que filhos procuram pais, encontram-se e desencontram-se. Mais do que isso: a novidade estava, como disse anteriormente, no trabalho da escuta, particularmente a escuta de crianças e adolescentes de camadas populares.
revistapontocom – Trinta anos depois, O Mito na Sala de Jantar ainda é o mesmo? Mudou alguma coisa? O quê?
Rosa Maria Bueno Fischer – Bem, os tempos mudaram e muito. Em primeiro lugar, vivemos um regime democrático. O sentimento persecutório, em termos políticos e culturais (das autoridades governamentais e das grandes redes de TV), ganhou novos contornos e, certamente, não existe como naquele tempo. Há várias conquistas, seja por parte dos movimentos sociais mais diferentes (relacionados a raças, etnias, opções de orientação sexual, geracionais, profissionais etc), seja por parte dos que lutam pela liberdade de expressão, ocorridas nessas três décadas. A própria posição do Brasil no cenário internacional tem outra configuração, que nos favorece politicamente – embora os tantos problemas que ainda tenhamos a enfrentar, especialmente em termos de saúde e educação. Mas, ao reler meu pequeno (e primeiro) livro, observo que as escolhas das crianças, quanto aos programas de maior receptividade entre elas, ainda hoje têm relação com o que venho chamando de “amor à narrativa” – e aos respectivos mitos, por exemplo, do amor romântico, da curiosidade sobre a própria origem, sobre a magia das histórias fantásticas (sejam as dita “reais”, sejam as propriamente ficcionais). Mas a mudança principal pode-se dizer que se concentra em dois aspectos diretamente relacionados entre si: de um lado, a ampliação do acesso à informação, pelas diferentes tecnologias digitais; de outro, a estupenda abertura de espaços em que proliferam não só narrativas ficcionais ou meramente informativas, mas especialmente narrativas mínimas, curtas, sincopadas, em que o “eu” é o personagem principal. Redes sociais multiplicam as narrativas de si mesmo. Considerando a chamada convergência das mídias, observa-se que as histórias voltadas “para o próprio umbigo” são uma tônica do nosso tempo: estão nos perfis, textos, fotos e vídeos postados no Facebook e estão nos programas de TV, particularmente nos reality shows. Eu diria que abre-se um espaço bem interessante para analisarmos as novas configurações do mito de Narciso.
Rosa Maria Bueno Fischer – Bem, os tempos mudaram e muito. Em primeiro lugar, vivemos um regime democrático. O sentimento persecutório, em termos políticos e culturais (das autoridades governamentais e das grandes redes de TV), ganhou novos contornos e, certamente, não existe como naquele tempo. Há várias conquistas, seja por parte dos movimentos sociais mais diferentes (relacionados a raças, etnias, opções de orientação sexual, geracionais, profissionais etc), seja por parte dos que lutam pela liberdade de expressão, ocorridas nessas três décadas. A própria posição do Brasil no cenário internacional tem outra configuração, que nos favorece politicamente – embora os tantos problemas que ainda tenhamos a enfrentar, especialmente em termos de saúde e educação. Mas, ao reler meu pequeno (e primeiro) livro, observo que as escolhas das crianças, quanto aos programas de maior receptividade entre elas, ainda hoje têm relação com o que venho chamando de “amor à narrativa” – e aos respectivos mitos, por exemplo, do amor romântico, da curiosidade sobre a própria origem, sobre a magia das histórias fantásticas (sejam as dita “reais”, sejam as propriamente ficcionais). Mas a mudança principal pode-se dizer que se concentra em dois aspectos diretamente relacionados entre si: de um lado, a ampliação do acesso à informação, pelas diferentes tecnologias digitais; de outro, a estupenda abertura de espaços em que proliferam não só narrativas ficcionais ou meramente informativas, mas especialmente narrativas mínimas, curtas, sincopadas, em que o “eu” é o personagem principal. Redes sociais multiplicam as narrativas de si mesmo. Considerando a chamada convergência das mídias, observa-se que as histórias voltadas “para o próprio umbigo” são uma tônica do nosso tempo: estão nos perfis, textos, fotos e vídeos postados no Facebook e estão nos programas de TV, particularmente nos reality shows. Eu diria que abre-se um espaço bem interessante para analisarmos as novas configurações do mito de Narciso.
revistapontocom – Qual era o ‘olhar’ que a educação, a academia, os intelectuais, da época do lançamento do livro, tinham para a televisão?
Rosa Maria Bueno Fischer – Como respondi acima, naquela época o forte era fazer uma análise severa da TV e mostrar, apocalipticamente, o quanto estávamos sendo manipulados por ela. Essa ideia de uma “influência” vertical da TV sobre os “pobres mortais” era bem acentuada. Claro, estou exagerando, pois temos vários estudos extremamente ricos e sérios, como os de Muniz Sodré (que, aliás, estava na minha banca de mestrado), autor, nos anos 1970, de dois livros bem importantes: A comunicação do grotesco. Introdução à cultura de massa brasilei¬ra; e O monopólio da fala. Função e linguagem da televisão no Brasil. Essa crítica precisava ser feita, era necessária, e se fazia competentemente por estudiosos como Sodré. Ao mesmo tempo, tínhamos o estudo de Sérgio Miceli, que ampliava essa perspectiva crítica, indo aos detalhes de como se construída um programa como o da Hebe Camargo, o que diziam os espectadores nas suas cartas à emissora e à apresentadora, o que dizia a própria Hebe. Umberto Eco, Pierre Bourdieu e Edgar Morin também nos ajudavam a pensar o que, afinal, constituía o “espírito do tempo”, naqueles idos de 1960-1970, no cinema e principalmente na televisão. Lembro que, ao terminar minha pesquisa e ao lançar o livro, imediatamente fui convidada para fazer palestras não só no meio acadêmico, mas também em empresas de televisão (no SBT) e em agências de publicidade. Em todos esses lugares, os profissionais manifestavam um interesse (cada um a seu modo) em pensar a TV para além de análises demolidoras, que viam nos programas uma fonte de todo o mal.
Rosa Maria Bueno Fischer – Como respondi acima, naquela época o forte era fazer uma análise severa da TV e mostrar, apocalipticamente, o quanto estávamos sendo manipulados por ela. Essa ideia de uma “influência” vertical da TV sobre os “pobres mortais” era bem acentuada. Claro, estou exagerando, pois temos vários estudos extremamente ricos e sérios, como os de Muniz Sodré (que, aliás, estava na minha banca de mestrado), autor, nos anos 1970, de dois livros bem importantes: A comunicação do grotesco. Introdução à cultura de massa brasilei¬ra; e O monopólio da fala. Função e linguagem da televisão no Brasil. Essa crítica precisava ser feita, era necessária, e se fazia competentemente por estudiosos como Sodré. Ao mesmo tempo, tínhamos o estudo de Sérgio Miceli, que ampliava essa perspectiva crítica, indo aos detalhes de como se construída um programa como o da Hebe Camargo, o que diziam os espectadores nas suas cartas à emissora e à apresentadora, o que dizia a própria Hebe. Umberto Eco, Pierre Bourdieu e Edgar Morin também nos ajudavam a pensar o que, afinal, constituía o “espírito do tempo”, naqueles idos de 1960-1970, no cinema e principalmente na televisão. Lembro que, ao terminar minha pesquisa e ao lançar o livro, imediatamente fui convidada para fazer palestras não só no meio acadêmico, mas também em empresas de televisão (no SBT) e em agências de publicidade. Em todos esses lugares, os profissionais manifestavam um interesse (cada um a seu modo) em pensar a TV para além de análises demolidoras, que viam nos programas uma fonte de todo o mal.
revistapontocom – Hoje então o “olhar” da educação, da academia, dos intelectuais para a televisão é outro?
Rosa Maria Bueno Fischer – Hoje, especialmente com a emergência dos Estudos Culturais dentro dos programas de pós-graduação em educação, a TV passou a ser um objeto de estudo do maior interesse. Peças publicitárias e programas de TV são analisados nessa perspectiva ou em outras, como a da Análise do Discurso. Há vários grupos de pesquisa, no Rio de Janeiro (UERJ e PUC-Rio), em Santa Catarina (UFSC) e aqui no Rio Grande do Sul (UFRGS), em que se reúnem pesquisadores genuinamente interessados em estudar a TV e as demais mídias (com ênfase também no cinema), não só investigando a linguagem desses meios, mas criando novas estratégias metodológicas de escuta de espectadores mais jovens. Isso é muito promissor e me sinto feliz de continuar incentivando estudantes a inventarem diferentes modos de “estar com” as pessoas e produzir com elas relatos e elaborações, a partir do que veem nas telas do cinema, da TV (e do computador).
Rosa Maria Bueno Fischer – Hoje, especialmente com a emergência dos Estudos Culturais dentro dos programas de pós-graduação em educação, a TV passou a ser um objeto de estudo do maior interesse. Peças publicitárias e programas de TV são analisados nessa perspectiva ou em outras, como a da Análise do Discurso. Há vários grupos de pesquisa, no Rio de Janeiro (UERJ e PUC-Rio), em Santa Catarina (UFSC) e aqui no Rio Grande do Sul (UFRGS), em que se reúnem pesquisadores genuinamente interessados em estudar a TV e as demais mídias (com ênfase também no cinema), não só investigando a linguagem desses meios, mas criando novas estratégias metodológicas de escuta de espectadores mais jovens. Isso é muito promissor e me sinto feliz de continuar incentivando estudantes a inventarem diferentes modos de “estar com” as pessoas e produzir com elas relatos e elaborações, a partir do que veem nas telas do cinema, da TV (e do computador).
revistapontocom – Há 30 anos, qual era o papel da TV brasileira? E hoje, como a senhora avalia a função da televisão?
Rosa Maria Bueno Fischer – Bem, acho que o papel da TV hoje e há 30 anos continua sendo o de “contadora de histórias”. Nós não vivemos sem histórias, sejam elas narradas por nossos pais, junto à nossa cama, quando crianças, seja no isolamento de um quarto ou de uma sala, seja num quarto de hospital. Esse é o aspecto principal: ver, ouvir, contar histórias. Distrair-se, informar-se, descansar do trabalho, aprender as coisas mais prosaicas, abrir janelas para o mundo. Mas não é só isso. A TV brasileira, como nos ensina Eugênio Bucci, conta a história de um país, e conta a seu modo; desenha para nós o que somos, e muitas vezes o que “deveríamos” ser, em termos políticos, sociais, humanos. Por mais que as grandes redes de TV se afirmem neutras ou sem uma posição política (partidária), a verdade é que estão nos orientando sobre modos de ser e estar neste mundo. Tenho observado que, mais recentemente, algumas telenovelas têm exagerado no que se refere a cultivar o sentimento da vingança, afirmando, como no caso da personagem principal da novela “Avenida Brasil”, da Rede Globo, que mais importante que o sentimento amoroso é a realização da vingança. Ou seja, o mito do amor romântico – que o psicanalista Jurandir Freire Costa diz ser um amor com data de validade, já que é fadado em geral a durar pouco tempo –, ainda vigente em nossos dias, reveste-se de novos valores, bastante discutíveis, como o da vingança a qualquer preço. O que é muito próxima, inclusive, da amoralidade da chamada “justiça pelas próprias mãos”. De qualquer forma, vejo que hoje a TV está mais sujeita a ser questionada, já que outras redes instantâneas de informação circulam no social: uma cena na TV, por exemplo, quando merecedora de discussão, imediatamente é colocada na internet, pela facilidade com que pode ser gravada e retransmitida. Ao mesmo tempo, essa facilidade de circulação de imagens e textos também corresponde a um excesso de coisas a ver e sobre as quais opinar. Ou seja, vivemos um tempo em que está sendo necessário, cada vez mais, fazer novos aprendizados, no caso, em relação à TV e a tantas imagens que nos chegam e a que temos acesso. Esses aprendizados, a meu ver, estão relacionados a uma ampliação de repertórios, e a um cuidadoso trabalho nas escolas, no sentido de haver maior discernimento nas nossas escolhas. E isso pode começar com pesquisas, por pequenas que sejam, como essa que realizei há exatos 30 anos. Momentos de conversa, de escuta, de encontro efetivo com crianças e jovens. Eles têm muito a dizer e quase sempre nos surpreendem, simplesmente pelo fato de terem sido genuinamente escutados.
Rosa Maria Bueno Fischer – Bem, acho que o papel da TV hoje e há 30 anos continua sendo o de “contadora de histórias”. Nós não vivemos sem histórias, sejam elas narradas por nossos pais, junto à nossa cama, quando crianças, seja no isolamento de um quarto ou de uma sala, seja num quarto de hospital. Esse é o aspecto principal: ver, ouvir, contar histórias. Distrair-se, informar-se, descansar do trabalho, aprender as coisas mais prosaicas, abrir janelas para o mundo. Mas não é só isso. A TV brasileira, como nos ensina Eugênio Bucci, conta a história de um país, e conta a seu modo; desenha para nós o que somos, e muitas vezes o que “deveríamos” ser, em termos políticos, sociais, humanos. Por mais que as grandes redes de TV se afirmem neutras ou sem uma posição política (partidária), a verdade é que estão nos orientando sobre modos de ser e estar neste mundo. Tenho observado que, mais recentemente, algumas telenovelas têm exagerado no que se refere a cultivar o sentimento da vingança, afirmando, como no caso da personagem principal da novela “Avenida Brasil”, da Rede Globo, que mais importante que o sentimento amoroso é a realização da vingança. Ou seja, o mito do amor romântico – que o psicanalista Jurandir Freire Costa diz ser um amor com data de validade, já que é fadado em geral a durar pouco tempo –, ainda vigente em nossos dias, reveste-se de novos valores, bastante discutíveis, como o da vingança a qualquer preço. O que é muito próxima, inclusive, da amoralidade da chamada “justiça pelas próprias mãos”. De qualquer forma, vejo que hoje a TV está mais sujeita a ser questionada, já que outras redes instantâneas de informação circulam no social: uma cena na TV, por exemplo, quando merecedora de discussão, imediatamente é colocada na internet, pela facilidade com que pode ser gravada e retransmitida. Ao mesmo tempo, essa facilidade de circulação de imagens e textos também corresponde a um excesso de coisas a ver e sobre as quais opinar. Ou seja, vivemos um tempo em que está sendo necessário, cada vez mais, fazer novos aprendizados, no caso, em relação à TV e a tantas imagens que nos chegam e a que temos acesso. Esses aprendizados, a meu ver, estão relacionados a uma ampliação de repertórios, e a um cuidadoso trabalho nas escolas, no sentido de haver maior discernimento nas nossas escolhas. E isso pode começar com pesquisas, por pequenas que sejam, como essa que realizei há exatos 30 anos. Momentos de conversa, de escuta, de encontro efetivo com crianças e jovens. Eles têm muito a dizer e quase sempre nos surpreendem, simplesmente pelo fato de terem sido genuinamente escutados.
revistapontocom – A senhora acaba de lançar mais um livro. E a questão da televisão continua presente. Trata-se do livro Trabalhar com Foucault – Arqueologia de uma Paixão (Editora Autêntica), onde a senhora propõe analisar a TV e o cinema a partir do discurso e do poder em Foucault. Em que medida esta análise pode favorecer o entendimento da mídia audiovisual?
Rosa Maria Bueno Fischer – Reuni neste novo livro, de 2012, estudos que venho fazendo há bastante tempo – desde a elaboração de minha tese de doutorado, que tratou de produtos da mídia endereçados a adolescentes e jovens (Adolescência em discurso: mídia e produção de subjetividade), com base nesse pensador genial que é Michel Foucault. Dentre tantos aprendizados que fiz com esse autor, um deles, especificamente relacionado aos estudos de TV e cinema, no âmbito da educação, é o de que produtos como os televisivos, por exemplo, dizem respeito a práticas (discursivas e não discursivas) de uma época, e como tal precisam ser analisados. Em outras palavras, há saberes que circulam em uma dada época – como o de que devemos nos confessar publicamente, por exemplo, e que isso tem um valor de verdade; ora, esses saberes estão nos discursos e estão nas práticas institucionais, das mais diferentes formas; exercem poder sobre nós, e muitas vezes nós resistimos a eles. Como isso ocorre, no caso da TV e do cinema? Que verdades circulam nesses meios? Como elas se tornam verdades também para nós? Como elas interpelam os sujeitos, como elas produzem coisas belas em nós ou como elas caminham no inverso das práticas de solidariedade e de justiça social? Foucault nos ensina que é preciso ir aos mínimos detalhes dos documentos (os próprios programas de TV, os filmes, a linguagem específica desses materiais, além dos depoimentos de crianças, professores, jovens, sobre essas mesmas produções). Foucault nos diz que devemos operar com esses documentos, transformando-os em verdadeiros monumentos. Isso permite nos defrontarmos com coisas ditas e coisas feitas, fatos por vezes surpreendentes, por vezes aparentemente inócuos, mas sempre questionados naquilo que até então tinham de óbvios, para serem mostrados como históricos, enraizados no seu tempo, como acontecimentos nem sempre lineares) às vezes como algo completamente inesperado). Lembro aqui o capítulo seis desse livro, “Técnicas de si na TV: a mídia se faz pedagógica”, só para citar um exemplo, cheguei a imaginar uma sugestão teórica e metodológica para investigações sobre o que chamei, com base em Foucault, de “dispositivo pedagógico da mídia”. O texto apresenta em detalhes o modo como se foi construindo uma pesquisa, relacionando os campos da comunicação, da pedagogia e da filosofia da cultura. Defendo ali a hipótese de que a mídia é também um locus de educação, de formação, de condução da vida das pessoas. E isso tem importantes repercussões nas práticas escolares, na medida em que crianças e jovens de todas as camadas sociais aprendem modos de ser e estar no mundo também nesse espaço da cultura. Proponho que continuemos a perguntar como se produzem e como entram em circulação não só técnicas de transformar a si mesmos, mas todo um conjunto de textos relacionados com a constituição de “discursos de verdade” sobre as complexas relações entre sujeito e verdade. Quanto ao cinema, tenho usado bastante Foucault, para pensar principalmente como é possível, de um lado, estudar a linguagem dos filmes, mostrando que não há uma correspondência direta entre imagens e palavras, e que a imagem (cinematográfica, no caso) só existe mesmo porque é vista, como está “em relação com” alguém, aquele que vê, aquele que entra em diálogo com ela. De outro, tenho usado a discussão de “hermenêutica do sujeito” em Foucault, para pensar na formação ética e estética de estudantes de Pedagogia (e de docentes, além de jovens e crianças), a partir de uma relação mais íntima com obras do cinema.
Rosa Maria Bueno Fischer – Reuni neste novo livro, de 2012, estudos que venho fazendo há bastante tempo – desde a elaboração de minha tese de doutorado, que tratou de produtos da mídia endereçados a adolescentes e jovens (Adolescência em discurso: mídia e produção de subjetividade), com base nesse pensador genial que é Michel Foucault. Dentre tantos aprendizados que fiz com esse autor, um deles, especificamente relacionado aos estudos de TV e cinema, no âmbito da educação, é o de que produtos como os televisivos, por exemplo, dizem respeito a práticas (discursivas e não discursivas) de uma época, e como tal precisam ser analisados. Em outras palavras, há saberes que circulam em uma dada época – como o de que devemos nos confessar publicamente, por exemplo, e que isso tem um valor de verdade; ora, esses saberes estão nos discursos e estão nas práticas institucionais, das mais diferentes formas; exercem poder sobre nós, e muitas vezes nós resistimos a eles. Como isso ocorre, no caso da TV e do cinema? Que verdades circulam nesses meios? Como elas se tornam verdades também para nós? Como elas interpelam os sujeitos, como elas produzem coisas belas em nós ou como elas caminham no inverso das práticas de solidariedade e de justiça social? Foucault nos ensina que é preciso ir aos mínimos detalhes dos documentos (os próprios programas de TV, os filmes, a linguagem específica desses materiais, além dos depoimentos de crianças, professores, jovens, sobre essas mesmas produções). Foucault nos diz que devemos operar com esses documentos, transformando-os em verdadeiros monumentos. Isso permite nos defrontarmos com coisas ditas e coisas feitas, fatos por vezes surpreendentes, por vezes aparentemente inócuos, mas sempre questionados naquilo que até então tinham de óbvios, para serem mostrados como históricos, enraizados no seu tempo, como acontecimentos nem sempre lineares) às vezes como algo completamente inesperado). Lembro aqui o capítulo seis desse livro, “Técnicas de si na TV: a mídia se faz pedagógica”, só para citar um exemplo, cheguei a imaginar uma sugestão teórica e metodológica para investigações sobre o que chamei, com base em Foucault, de “dispositivo pedagógico da mídia”. O texto apresenta em detalhes o modo como se foi construindo uma pesquisa, relacionando os campos da comunicação, da pedagogia e da filosofia da cultura. Defendo ali a hipótese de que a mídia é também um locus de educação, de formação, de condução da vida das pessoas. E isso tem importantes repercussões nas práticas escolares, na medida em que crianças e jovens de todas as camadas sociais aprendem modos de ser e estar no mundo também nesse espaço da cultura. Proponho que continuemos a perguntar como se produzem e como entram em circulação não só técnicas de transformar a si mesmos, mas todo um conjunto de textos relacionados com a constituição de “discursos de verdade” sobre as complexas relações entre sujeito e verdade. Quanto ao cinema, tenho usado bastante Foucault, para pensar principalmente como é possível, de um lado, estudar a linguagem dos filmes, mostrando que não há uma correspondência direta entre imagens e palavras, e que a imagem (cinematográfica, no caso) só existe mesmo porque é vista, como está “em relação com” alguém, aquele que vê, aquele que entra em diálogo com ela. De outro, tenho usado a discussão de “hermenêutica do sujeito” em Foucault, para pensar na formação ética e estética de estudantes de Pedagogia (e de docentes, além de jovens e crianças), a partir de uma relação mais íntima com obras do cinema.
revistapontocom – A senhora poderia explicar para os leitores, de forma resumida, o que seria a teoria do discurso e do poder em Foucault?
Rosa Maria Bueno Fischer – Para Foucault, onde há poder há resistência. E só se exerce poder sobre homens livres. As relações de poder precisam ser vistas também na sua condição de horizontalidade – no sentido de que sempre há a possibilidade de uma certa reversibilidade, e nas mínimas relações, não só do Estado em relação aos cidadãos. Ele prefere falar não simplesmente em poder, mas em relações de poder, porque sempre haverá mais força de um lado e, ao mesmo tempo, sempre haverá uma certa forma de liberdade, mesmo nas condições mais adversas de desequilíbrio entre as duas partes. Isso porque o poder é móvel, desloca-se e podem ser criadas e vividas “linhas de fuga” ao instituído. Mas o fato é que sempre estamos imersos em relações de poder. Quanto ao discurso em Foucault, podemos dizer, sinteticamente, que para esse autor discurso é sempre uma prática. Ou seja, os discursos não só nomeiam ou representam a realidade: eles também criam, constituem determinados modos de pensar e ver o mundo, nos mais diferentes campos. Nós podemos falar em “discurso pedagógico” e levantar, por exemplo, quais os principais enunciados que circulam nas práticas institucionais das escolas. Veremos que esse discurso varia, historicamente, mas que ele constitui modos de ser professor, de ser aluno, de aprender, e assim por diante. O importante é que não há em Foucault uma separação (e nem uma identidade) entre “dizer” e “fazer”: o que fazemos tem a ver com saberes, com discursos que assumimos como verdade para nós (ou que questionamos, igualmente); da mesma forma, o que dizemos está mergulhado em saberes que circulam no social, aprendidos historicamente. Tudo é prática. Os programas de TV são, de algum modo, também formas práticas de alguns discursos se transformarem em imagens e textos, e fazerem circular saberes de uma época. Tudo tem uma mobilidade, e principalmente a possibilidade de abertura, de questionamento, de estudo. Sobretudo, de criação.
Rosa Maria Bueno Fischer – Para Foucault, onde há poder há resistência. E só se exerce poder sobre homens livres. As relações de poder precisam ser vistas também na sua condição de horizontalidade – no sentido de que sempre há a possibilidade de uma certa reversibilidade, e nas mínimas relações, não só do Estado em relação aos cidadãos. Ele prefere falar não simplesmente em poder, mas em relações de poder, porque sempre haverá mais força de um lado e, ao mesmo tempo, sempre haverá uma certa forma de liberdade, mesmo nas condições mais adversas de desequilíbrio entre as duas partes. Isso porque o poder é móvel, desloca-se e podem ser criadas e vividas “linhas de fuga” ao instituído. Mas o fato é que sempre estamos imersos em relações de poder. Quanto ao discurso em Foucault, podemos dizer, sinteticamente, que para esse autor discurso é sempre uma prática. Ou seja, os discursos não só nomeiam ou representam a realidade: eles também criam, constituem determinados modos de pensar e ver o mundo, nos mais diferentes campos. Nós podemos falar em “discurso pedagógico” e levantar, por exemplo, quais os principais enunciados que circulam nas práticas institucionais das escolas. Veremos que esse discurso varia, historicamente, mas que ele constitui modos de ser professor, de ser aluno, de aprender, e assim por diante. O importante é que não há em Foucault uma separação (e nem uma identidade) entre “dizer” e “fazer”: o que fazemos tem a ver com saberes, com discursos que assumimos como verdade para nós (ou que questionamos, igualmente); da mesma forma, o que dizemos está mergulhado em saberes que circulam no social, aprendidos historicamente. Tudo é prática. Os programas de TV são, de algum modo, também formas práticas de alguns discursos se transformarem em imagens e textos, e fazerem circular saberes de uma época. Tudo tem uma mobilidade, e principalmente a possibilidade de abertura, de questionamento, de estudo. Sobretudo, de criação.
Fonte: RevistaPontoCom (http://www.revistapontocom.org.br/entrevistas/o-mito-na-sala-de-jantar)
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