Jornalismo, ética e infância

Diante da ausência de regras mais específicas sobre a cobertura de crianças, jornalistas precisam compreender aspectos éticos mais gerais, como o princípio da dignidade humana

Opinião - Por Rafiza Varão
Publicado no Portal Imprensa
27/05/2019

O Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros não fala sobre ela. Em seus curtos cinco capítulos, não há uma única menção a crianças e ao primeiro período da vida humana. Nenhuma indicação das relações entre ética e a cobertura possível dessa fase. Enquanto isso, e entretanto, as chamadas inundam timelines e feeds de notícias – e a infância nos atravessa e se impõe como pauta.



Os exemplos acima (de IstoÉ, Veja, G1 e Marie Claire) não se configuram como temas para as crianças, mas sobre crianças. É sobre esse aspecto queremos falar aqui: quando a infância vira pauta factual, como agir? É esse um assunto que deve ser tratado como todos os outros, a partir dos cânones, tantas vezes imprecisos, da objetividade e da imparcialidade? É possível tratá-las como elemento neutro no discurso jornalístico, que escapa a um engajamento na salvaguarda de seus direitos?

Há, no jornalismo de hoje, uma situação dicotômica. Por um lado, no que diz respeito à ética, poucas são as orientações oferecidas pelo código deontológico dos jornalistas (se concordarmos que, talvez, em algumas de suas entrelinhas, a infância possa ser contemplada em artigos que tratam de responsabilidade, natureza social, finalidade pública e compromisso com os direitos humanos no jornalismo); por outro, desde a publicação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990, houve um aumento significativo em materiais jornalísticos sobre questões relacionadas a crianças e adolescentes (764% só entre os anos de 1996 e 2002, segundo pesquisa de Lidia Marôpo), que ganham um marco regulatório para a defesa de seus direitos e garantias sociais. 

Diante desse panorama, ao longo das últimas quase três décadas, algumas iniciativas no Brasil vêm preenchendo lacunas na orientação aos profissionais de comunicação, não só de jornalismo, acerca dos direitos das crianças. A mais notória é a ANDI (antes, Agência de Notícias dos Direitos da Infância; hoje apenas Comunicação e Direitos), fundada pelos jornalistas Âmbar de Barros e Gilberto Dimenstein, em 1990. No site da agência, é possível encontrar inúmeras dicas para a realização do trabalho jornalístico junto à infância, além de documentos referentes à legislação. Outras organizações que auxiliam na reflexão sobre mídia e crianças são a Primeira Infância em Pauta, a Rede Nacional da Primeira Infância e o Instituto Alana. O ECA também tem sido um importante instrumento balizador para determinar a proteção que cabe às crianças. Os manuais de redação dos grandes jornais do país costumam trazer uma série de princípios baseados no Estatuto, mas as instruções, em geral, são mais focadas na questão jurídica do infrator menor de idade – o que não oferece muito proveito diante de dilemas éticos. Nesses casos, há claramente o receio de uma punição legal, mas pouca preocupação com quem são as meninas e meninos alvo do labor jornalístico. 

Dessa forma, as instituições citadas muitas vezes terminam por fazer aquilo que o jornalismo se escusa, com pouca razão, de ter tempo: a reflexão sobre as garantias individuais que os infantes possuem, baseada na certeza de que eles são sujeitos de direitos, e em uma categoria especial, que confere proteção integral, expressa na Constituição Federal de 1988. 

“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” - Artigo 227, Constituição Federal

Além disso, a Constituição profere, no que tange a direitos individuais e coletivos, o princípio da dignidade humana como valor supremo, considerado juridicamente como fundamento da República. Eis aí um ponto relevante para se pensar a cobertura da infância: a dignidade não se atrela à idade, ou à esquiva do processo jurídico, mas à própria condição humana. Não deve ser oferecida apenas a quem consegue lutar por ela, mas inclusive aos incapazes de se integrar ativamente às pelejas. A dignidade nos constitui como cidadãos e a infância é espaço/tempo privilegiado para sua edificação. 

Se assim é, a infância precisa ser observada sob essa ótica, independente da existência ou não de códigos deontológicos mais específicos. Não se pode ser neutro diante das crianças que compõem as linhas de nossos textos. Cada notícia construída sobre elas deveria ser, por si só, combate e empenho permanente para sua proteção. Talvez essa seja a “dica” mais consistente a ser dada acerca da infância no jornalismo: preserve-a e batalhe por ela. Pense antes de expô-la. E, claro, quer saber quais são os direitos que cobrem essa fase da vida em nosso país? Faça do ECA seu companheiro; conheça a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Defenda aqueles a quem sua palavra dá forma. Não é favor. Não é detalhe. É obrigação. 

Rafiza Varão - Doutora em Comunicação pela Universidade de Brasília (2012), 
na área de Teoria e Tecnologias da Comunicação. É mestre em Comunicação também pela Universidade de Brasília (2002), na área de Imagem e Som. Graduou-se em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo (1999). Leciona na Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília e trabalha especialmente com Teorias da Comunicação, Ética e Redação Jornalística. Coordena o projeto SOS Imprensa e é coordenadora editorial da FAC Livros.

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