Reflexões sobre o inimigo...
Sempre que pensarem que a luta das mulheres, dos negros, da
população LGBT, de crianças e adolescentes, de ciganos, de imigrantes, de
cidadãos da classe econômica mais baixa, etc for apenas um MIMIMI, lembrem-se
que por séculos esses povos foram considerados inferiores (e ainda o são em alguns países e contextos). Sua imagem foi
construída como o inimigo, o outro, o diferente de mim, com costumes diferentes dos meus, aquele que não merece o
que eu mereço, não merece o meu respeito.
A construção do inimigo, segundo Eco (2011), define nossa identidade e é importante para arranjarmos um obstáculo em relação ao qual seja medido nosso sistema de valores e para mostrar, no afrontá-lo, o nosso valor. Se não temos um inimigo, então, temos que criá-lo.
A nosso ver, a criação do inimigo legitima muitas vezes preconceitos, violências,
omissões, em nome de uma "moral imoral", de bons costumes, da preservação de uma tradição colonialista, hipócrita, reacionária; de uma desculpa para frear a violência que existe justamente pela falta de respeito aos mínimos direitos de uma série de populações marginalizadas, sem voz, sem direitos.
O inimigo serve para criar "salvadores" e "bolsomitos" que chegaram para "colocar ordem na desordem" e "cada macaco no seu galho". Afinal, desde que o mundo é mundo que os pobres são pobres, que os negros são escravos, que as mulheres são submissas, que os homossexuais devem esconder seu pecado. Nada deve mudar. Não se deve perturbar o silêncio da opressão. O único rumor permitido é o de panelas de aço inoxidável da elite que reclama do Brasil, por exemplo, mas muda-se para a Europa e acha lindo o sistema público de saúde e educação a funcionar e vive sob os auspícios de governos socialistas. Se é que sabem o que é isso.
Entre os inimigos, o pobre que viaja ao lado do patrão. Entre os inimigos, a mulher. Essa,desde a Antiguidade e durante a Idade Média especialmente. E de uma misoginia que segundo Eco (2011) era considerada normal, chegamos à construção da bruxa que devia ser queimada.
A mulher chegou a ser descrita assim por Giovanni Boccaccio (para ficar apenas em um nome):
(...) é animal imperfeito, enamorada
por mil paixões lamentáveis e abomináveis até de se recordar, quanto mais de
pensar nelas (...). Nenhum outro animal é menos limpo do que ela: nem o porco,
quando chafurda na lama, chega à imundície delas; e se acaso alguém quiser
negar isto, que observe então as partes delas, procure lugares secretos onde
estas, daquelas se envergonhando, escondem os horríveis instrumentos que usam
para extrair os seus humores supérfluos.
Entre os inimigos, o negro.
Na entrada
“Negro”, da Encyclopaedia Britannica, primeira edição americana, de 1798,
podia-se ler que os vícios mais absurdos seriam o destino desta “raça infeliz”.
E seguem-se os vícios: ócio, traição, vingança, crueldade, imprudência, furto, mentira,
turpilóquio, devassidão, mesquinhez, intemperança. “São estranhos a qualquer
sentimento de compaixão e constituem um terrível exemplo da corrupção do homem
quando abandonado a si mesmo”. Isso numa enciclopédia, local de referência para
pesquisas e para saber sobre o mundo, para conhecer.
“Negro”descrito na Encyclopaedia Britannica, primeira edição americana, de 1798 (Tradução do livro Construir inimigos e outros escritos ocasionais - Umberto Eco, 2011) |
Quantas gerações
foram criadas a partir desse estereótipo? Quantas pessoas foram educadas a ver
o negro como o feio e, portanto, o mau (porque a bondade estaria ligada a
beleza e os negros, os pobres, os “outros”, os estrangeiros são feios).
Que fique a
reflexão sobre o quanto ainda temos que aprender sobre respeito, direitos
humanos, igualdade, racismo, preconceito, feminismo...o quanto ainda temos que
aprender, estudar, estudar, estudar e tentar sair da Caverna de Platão que nos
deixa em meio a sombras e à ignorância que produz “bolsomitos”, que permite a
reforma trabalhista vergonhosa que foi feita no Brasil, que permite diariamente
e há séculos o preconceito e o crime contra negros, mulheres, crianças/adolescentes
e homosexuais no mundo inteiro.
Fonte de inspiração: Construir inimigos e outros escritos ocasionais - Umberto
Eco
Gradiva, Lisboa, 2011
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