Como iniciar práticas educomunicadoras na escola?
Do Centro de Referências em Educação Integral
Uma educação comprometida com a formação integral do
indivíduo deve dar conta de todas as dimensões do desenvolvimento humano e
estabelecer-se como processo ao longo da vida. Nesse sentido, o repensar das
práticas de ensino e aprendizagem e o reconhecimento de seus potenciais
agentes, tempos e espaços torna-se fundamental para oportunizar outras
possibilidades educativas, para além daquelas compartimentadas pelos
tradicionais currículos escolares.
Nesse contexto, a educação é cada vez mais tensionada a estabelecer
diálogo com outras áreas do conhecimento, em arranjos mais abertos, criativos,
participativos e que buscam, sobretudo, não hierarquizar a distribuição do
saber, possível a qualquer pessoa dado o seu reconhecimento enquanto produtor
de cultura. Essa é a defesa da educomunicação, conceito que vem dando pistas de
como o uso dos meios, linguagens e instrumentos de comunicação podem estar
presentes no espaço escolar, garantindo não só o direito universal à
comunicação, mas também outras possibilidades de aprendizagem.
Unindo fontes acadêmicas e práticas de diferentes
experiências, o Centro de Referências em Educação Integral procurou elucidar
possíveis caminhos para o início das práticas educomunicadoras em instituições
de ensino. A trilha foi construída com o apoio do professor do curso de
licenciatura em Educomunicação da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da
Universidade de São Paulo (USP), Marciel Consani.
O que é uma prática educomunicadora?
Para o pesquisador, é fundamental que haja, de início, um
esclarecimento sobre o que diferencia a educomunicação de outras linhas de
abordagem semelhantes. A explicação parte do século 20, especialmente da década
de 80 em diante, quando se iniciou a preocupação de colocar as tecnologias, e
depois as mídias, dentro da escola como suporte a projetos pedagógicos
existentes. O chamado uso instrumentalizador da tecnologia e das mídias era
utilizado no seguinte contexto: partia-se de um projeto educacional,
aparentemente perfeito em suas metas e pressupostos, mas repleto de
dificuldades de aceitação por parte dos alunos, ou distante de refletir o que a
sociedade representava, configurando a escola como uma ilha isolada dos
fenômenos da modernidade, especialmente da mídia. “A ideia era a de integrar as
tecnologias a um projeto pedagógico predefinido”, atesta Consani.
A educomunicação, por sua vez, se apresenta como solução
para os problemas de ordem comunicativa, pelos seus pressupostos considerarem
que são estes os nutridores dos impasses de ordem pedagógica ou mesmo políticos.
Os problemas de comunicação permeiam as relações entre os alunos, dos alunos
com os professores e demais instâncias da escola, e dela mesma com seu entorno,
com a sociedade, comunidade e famílias. Esse entendimento parte das teorias de
comunicação pós-modernas, pós-estruturalistas, que vão além das teorias das
recepções dos meios de comunicação, e sugerem a mediação. A ideia é que a
comunicação independe dos meios uma vez que, o que está em jogo, são as
mediações que ali atuam. Partindo disso, a educomunicação coloca dois
questionamentos fundamentais: onde a comunicação pode ser melhorada na escola?
E de que forma?
O papel dos gestores
Para a gestão, é essencial partir de um diagnóstico
preliminar que indique problemas de natureza comunicativa. E não se trata de
estabelecer fluxos informativos, mas de estabelecer diálogo, prerrogativa
básica para o método que tem no seu corpus doutrinário a obra de Paulo Freire.
“A nosso ver, não existe comunicação sem diálogo”, afirma o pesquisador.
Todo projeto educomunicativo, em essência, visa ampliar o
diálogo na escola. Na prática isso significa possibilitar participação de
pessoas anteriormente excluídas, transformar diálogos unilaterais em
bilaterais, estabelecer canais de comunicação para que as pessoas consigam se
manifestar, expressar sua voz, “e edificar o que chamamos de ecossistema
comunicativo“, coloca.
Em primeira instância é preciso definir a natureza e a
prioridade dos problemas de comunicação que têm que ser resolvidos. Em um
segundo momento, é a hora de descobrir suas vocações, ou seja, estabelecer os
canais de comunicação com os quais irá trabalhar. O educador exemplifica: “há
escolas de educação infantil que não conseguem trabalhar com texto escrito ou
uma tecnologia sofisticada como câmeras e editores de vídeo devido a fase de
desenvolvimento das crianças. Veja que, nesse caso, a oralidade tem mais peso
do que a comunicação verbal. E, assim, esses cenários precisam ser
considerados”.
Entra em cena o professor mediador
Nesse momento é que deve figurar o professor mediador
(educomunicador), responsável por estabelecer relações entre a
criança/estudante e o currículo, e também entre a gestão, as diretrizes
curriculares e o plano de aula a ser executado. Isso não significa apenas fazer
o meio de campo entre o repertório cultural, o conhecimento institucionalizado
e a criança. “Ele tem que ensinar e aprender a se comunicar, se comunicando”,
garante Consani.
Para tanto, como primeira atitude, espera-se que o professor
considere o conhecimento prévio da criança, o universo cultural que está nela,
em seu entorno, na comunidade que ela vive para que haja uma abertura para a
negociação desse contexto com seu próprio repertório individual e, depois, com
aquilo que representa, no caso, a escola, por meio de seu currículo. “Em outras
palavras, não adianta nada despejar um monte de conceitos prontos que não fazem
sentido, que não estejam contextualizados ou não dialoguem com o universo
daquele aluno, e classificar isso como educativo. A educação se faz por uma espécie
de reconhecimento dentro de um repertório cultural”, explicita o pesquisador.
Ao que complementa: “então, mesmo quem não assiste a novela
na Globo, sabe o que acontece. É preciso criar essa referência cultural
compartilhada. A questão não está em tentar purificar essa influência cultural
externa, mas em utilizar esses formatos comerciais veiculados pela mídia e
promover uma crítica, não a partir de uma visão moralista, mas de uma
problematização em que o aluno seja o protagonista. A leitura crítica tem que
ser desenvolvida como uma habilidade, uma competência, e não vir pronta.”
Alunos participativos
Segundo o pesquisador, essa demanda é direcionada pelo
perfil dos alunos. Ele alega que, ao longo dos estudos realizados pelo Núcleo
de Comunicação e Educação da Universidade de São Paulo (NCE) características
próprias desse grupo e duas necessidades essenciais ficaram evidentes. Uma
delas diz respeito à expressão, à vontade de ter voz, de dizer o que pensa e
sente, o que não implica necessariamente em um canal de comunicação mas,
sobretudo, no estímulo. Outra é estabelecer uma condição de pertencimento, de
encontrar um espaço onde possa ouvir sua música, de produzir e mostrar suas
produções.
Em sua análise, o estudante tem como modelo a terceira
instância educadora. “A gente fala que a primeira é a escola, a segunda a
família e a terceira é a mídia. E a mídia nunca vai ser controlada pela escola.
Então, tem que haver essa negociação”, reforça. O modelo de comunicação
primário do aluno é o da televisão, do rádio, das emissoras de sinal aberto.
Por isso a necessidade de lê-los criticamente, processo que o aluno não inicia
sozinho, em sua individualidade. “Isso tem que acontecer dentro da escola, a
partir de um trabalho de mediação dos professores”.
Para Consani, quando o professor investe nesse papel de
mediador entre a cultura institucionalizada, a mídia, e mostra as conexões
existentes, o aluno descobre duas coisas fundamentais: que ele não vive em um
mundo à parte e que pertence a uma comunidade e se depara com a questão da
expressão, de querer colocar suas dúvidas, sentimentos e opiniões.
O espaço da família/comunidade
Na educomunicação, o conceito de comunidade escolar é
entendido como não excludente, o que significa que o entorno do contexto
escolar, ou seja, a comunidade e os familiares são considerados no processo de
ensino aprendizagem. O pesquisador explica que a prática teve uma mudança de
viés ao longo dos anos. No final da década de 90, eram bastante comuns as
práticas educomunicadoras em contextos de organizações não governamentais e
informais; a mudança, como explica, veio com a entrada do processo no âmbito do
poder público, em parceria entre centros de estudo e redes de ensino, em
contextos formais.
Nessa mudança histórica houve a necessidade de se reconhecer
alguns conceitos, já presentes no repertório de escolas de educação mais
avançada, libertária, como o da comunidade escolar. Não há comunidade escolar
sem o envolvimento da família. “Ela permite que a produção do aluno seja
compartilhada para fora do espaço escolar, e isso é mais uma estratégia de
mostrar para a família o que ele faz e despertar o interesse para as ações
educativas”.
Além disso, espera-se que a família possa se envolver
ativamente nos processos de pesquisa sobre os quais os temas trabalhados
demandam. Toda temática deve ser investigada e problematizada. E, embora a
internet, seja um meio facilitador, não é o fim do trabalho pedagógico, e sim o
começo. “O principal é a criança saber reconhecer os possíveis desdobramentos
de pesquisa no entorno que ela transita, e a família pode e deve participar
disso para se construir uma educação significativa, com interação na vida
concreta”, afirma Consani.
A educomunicação a favor da educação integral
A meta de construir a cidadania, a partir do pressuposto
básico do exercício do direito de todos à expressão e à comunicação, foi
entendida como política pública nacional, além de nortear diversas práticas
educativas pelo país.
No que tange a agenda pública, a educomunicação conseguiu
figurar entre os macrocampos do programa Mais Educação, iniciativa do governo
federal para diversificar e qualificar as oportunidades de aprendizagem nos
ambientes escolares. A proposta é que as escolas possam fazer uso dos recursos
midiáticos – rádio, jornal, fotografia, vídeo, histórias em quadrinhos – para
promover o desenvolvimento de projetos educativos dentro dos espaços escolares,
com a construção de propostas engajando os alunos em ações de colaboração para
a melhoria das relações entre as pessoas, além de projetos de aprendizagem por
meio da reflexão crítica e da possibilidade de intervenção na própria escola e
na comunidade.
O cenário abre bons precedentes para a educação integral, a
começar pelos próprios ambientes de aprendizagem. Deslocado para o papel de
mediador de conhecimento, e não detentor, o professor pode se aproximar de seus
alunos e, juntos, construírem percursos educativos mais colaborativos e
significativos. Essa configuração que se dá com base em trabalho em equipe,
debates e pesquisa possibilita situações mais democráticas e participativas.
O acesso a outras linguagens também é visto numa perspectiva
integradora, como parte estrutural de um processo que promove a formação de
cidadãos participativos política e socialmente, capazes de interagir na
sociedade da informação na condição de emissores e não apenas consumidores de
mensagens, o que garante o direito à comunicação.
Ainda assim, há considerações a serem colocadas, como elenca
Marciel Consani. “A ideia do Mais Educação de aproveitar ao máximo o tempo
escolar como um tempo educativo e não ficar preso a uma aula magna, expositiva,
dá abertura para que se trabalhe com estratégias de diálogo com a mídia, com a
cultura popular e outros campos como as artes”.
Por outro lado, a educomunicação se faz como um elemento que
promove a transdisciplinaridade e a transversalidade dentro das áreas de
conhecimento. E, portanto, os temas dentro dos macrocampos estão estruturados a
partir de estratégias de “fazeres”, como fazer um vídeo, uma fotografia, uma
história em quadrinhos. “Cada um deles traz uma linguagem, um repertório
específico que precisa ser contextualizado, por não ser inerente à linguagem”,
observa Consani.
A partir disso, o educador questiona as formas de se
trabalhar prevendo o estabelecimento de significado na aprendizagem. “Como se
trabalha com isso? Você vai apenas decupar as histórias, ou tentar entender o
que as narrativas querem transmitir? Isso é pouco do ponto de vista
educomunicativo?”. Consani reitera que, na parte prática, o que se espera é que
a criança crie suas próprias narrativas, que até podem partir de um modelo, mas
que tenha autonomia para romper tais amarras e se arriscar em criações livres.
“Veja que, em um determinado momento, essa história pode ser
dramatizada, virar um vídeo, um tema pra redação com variações do enredo. É
possível transportar a ideia e praticar o esforço de dialogar com a cultura em
uma espécie de ciranda das mídias”, afirma. A seu ver, a educomunicação não se
atém a uma ou outra mídia específica, pelo contrário. É uma abordagem que
funciona em qualquer mídia e na interface entre várias delas. Então, o foco não
está no fazer em si. Em suma, na educomunicação, a chave é entender que o fazer
é um pretexto para a autorreflexão da criança frente ao seu repertório
cultural.
*Fazem parte do Redação na Rua os sites Catraca Livre,
Centro de Referências em Educação Integral, Guia de Empregos, Portal Aprendiz,
Porvir e VilaMundo.
Fonte: http://porvir.org/porfazer/como-iniciar-praticas-educomunicadoras-na-escola/20150227
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